Catarina Calungueira, RN, 12min
Still: Acácio Medeiros / Raildon Lucena
No curta “Alumbrado”, de Catarina Calungueira, somos apresentados à história de Marcelino Martins de Lima, também conhecido como Marcelino de Zé Limão, um bonequeiro do Sítio Pau Lagoa, em Cruzeta (RN), que há 70 anos mantém viva a arte do mamulengo.
O filme começa com cenas da vegetação da caatinga, no sertão nordestino, e a música clássica ao fundo vai nos envolvendo e apresentando uma atmosfera que evoca as paisagens áridas do Seridó.
A câmera revela, aos poucos, os cômodos de uma casa simples, característica de camadas populares na região, com fogão a lenha, janelas abertas, sem portões, e o canto dos pássaros ao fundo. As portas dos cômodos são formadas por lençóis pendurados.
O filme, então, nos transporta para um quarto, onde vemos quatro malas antigas, de madeira, que evocam um ar de mistério. A narrativa ganha força quando Marcelino encontra uma chave e abre as malas, revelando o teatro de bonecos - os calungas, como era chamado. A partir daí, Marcelino nos conta sobre a arte do teatro de bonecos e como essa “brincadeira”
proporcionou uma transformação em sua vida e na de sua família.
Ainda quando criança, Marcelino conheceu um calungueiro e, por curiosidade, começou a assistir às apresentações. Ele lembra que, no início, brincava com bonecos que fazia com sabugos de milho e notava como as pessoas achavam aquilo engraçado. Esse contato inicial com o teatro de bonecos foi o que plantou a semente de uma arte que, mais tarde, mudaria a sua vida.
A importância de filmes como “Alumbrado” reside justamente na capacidade de registrar as histórias de pessoas que, à primeira vista, podem ser consideradas “comuns”, mas que, na verdade, são ícones em seus talentos e trajetórias. Essas histórias nos ensinam que a resistência histórica ocorreu em múltiplos formatos, muitas vezes, invisibilizados.
A partir daí, conhecemos a trajetória de Marcelino e como a arte do mamulengo proporcionou uma virada na sua vida e na de sua família. Ele relata como, durante a grande seca de 1958 – quando colocar comida na mesa era uma realidade de poucos – o teatro de bonecos se tornou um meio de sobrevivência para a sua família.
A história de Marcelino desafia a figura historicamente construída do homem nordestino como o “cabra macho”, “a encarnação do falo”, “duro” e “viril” – uma imagem que Albuquerque Jr. analisa em “A Invenção do Nordeste” (2013). Essa figura foi moldada para criar uma identidade viril para a região, num contexto onde se acreditava que apenas os mais fortes e corajosos sobreviveriam às adversidades do sertão. No entanto, Marcelino oferece uma perspectiva diferente: a leveza, a alegria, o cômico e a comédia foram suas principais armas de resistência frente às secas e à fome. Sua história revela que há diversas formas de resistir, e que a arte e o humor foram fundamentais tanto para sua sobrevivência quanto para a construção de uma identidade cultural que desafia estereótipos.
Historicamente, vemos que danças, músicas e a alegria foram formas poderosas de resistência para o povo negro em espaços de segregação. Essas manifestações culturais, expressas de diversas maneiras, não só preservaram identidades, mas também serviram como ferramentas de luta e sobrevivência em contextos adversos. Elas criaram espaços de liberdade e afirmaram a própria humanidade, mesmo em meio à opressão.
Para Marcelino, os bonecos são uma forma de diversão, e para mim, ao assistir ao curta “Alumbrado”, a palavra de ordem que me pega é alegria. Essa alegria, simbolizada pela leveza e pela comédia no teatro de bonecos, reflete a resistência que desafiou os tempos difíceis e os estereótipos opressivos. Ela demonstra como a arte pode transformar vidas e oferecer novas formas de enfrentamento e sobrevivência.
Texto produzido como produto final da oficina de crítica cinematográfica ministrada por Cecília Barroso durante a programação da 3ª Macambira - Mostra de Cinema de Mulheridades e Dissidentes de Gênero. Autoria de Amanda Raquel e Revisão Rosy Nascimento.
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