Jane Gomes e Caio Medeiros, RN, 15min
Still: Auana Câmara
O curta-metragem “Felis” (2024), produzido por Jane Gomes, inicia com um retorno carregado de emoções e simbolismos. A chegada de Janaina à rodoviária de Natal, Rio Grande do Norte, com a sua mala e a atmosfera de movimento constante ao redor, marca o início de uma jornada de retorno e reencontro. A presença de crianças brincando no entorno de Janaina sugere uma conexão com a infância e o retorno ao lar, onde ela se reconecta com sua mãe e avó.
Ao andar pelas ruas de sua comunidade, Janaína retorna a uma casa que evoca uma sensação de lar acolhedor. Ao longo dos 15 minutos do curta, acompanhamos três gerações de mulheres em uma narrativa que entrelaça o presente com memórias do passado. Janaína volta à sua cidade natal após sofrer uma perda gestacional, em busca de consolo e apoio nas mais velhas de sua família. Mas, além de receber esse cuidado tão desejado, ela também retorna para auxiliar sua mãe nos cuidados de sua avó, Felismina, que foi recentemente diagnosticada com Alzheimer. A perda do filho parece ter intensificado em Janaína a necessidade de estar próxima das gerações anteriores, pois, com o adoecimento de sua avó, talvez, ela sinta que uma parte de si mesma também está se perdendo.
Ao assistir ao filme, o espectador pode ser intrigado por um nome que Felismina chama sua neta Janaína, mas que filha e neta não reconhecem. Na mistura entre o presente e as memórias do passado, percebemos que Felismina está simultaneamente aqui e lá. Observamos essas três gerações de mulheres em diálogo, cada uma lidando com questões pertinentes à sua fase da vida, embora em temporalidades distintas. No entanto, algo as conecta através do tempo: a memória ancestral, que está enraizada no passado, presente no agora, e muito provavelmente se perpetuará no futuro. O filme, então, revela que, além das
gerações visíveis, há outras presentes de forma sutil, através das perdas e memórias compartilhadas.
O cuidado é um tema central, refletido em cenas como quando Janaína penteia sua avó, Felismina. É uma cena rica em sentidos para mulheres negras, simbolizando um ato de carinho e ressignificação do cabelo, que em muitos momentos foi associado a dor e vergonha em contextos históricos de opressão.
Ao assistir “Felis”, percebo que o ato de cuidar possui uma dimensão profundamente subjetiva, estabelecendo vínculos e afetos entre quem cuida e quem é cuidado. É importante ressaltar que o cuidado não deve ser encarado como uma forma de subordinação ou subserviência, como muitas vezes é associado a figura das mulheres negras, devido à maneira como os cuidados têm sido historicamente racializados no Brasil, especialmente, quando tarefas domésticas e de cuidado são delegadas, expondo uma dinâmica de exploração que afeta principalmente mulheres pobres e racializadas. Pelo contrário, o cuidado, quando praticado pela comunidade negra, como discutido por Kilomba (2019), pode ser uma expressão de solidariedade e resistência.
Em vários momentos, senti-me profundamente emocionada. Fui transportada de volta às cenas da infância e às transformações que vivenciamos ao longo dos ciclos da vida. Aquelas que antes eram cuidadas agora são as cuidadoras. Contudo, todas se cuidam mutuamente. Afinal, mesmo com o diagnóstico de Felismina, ela ainda oferece colo e cafuné para a sua neta. Assim, vemos como o tempo é uma espiral que ressignifica lugares, sentimentos e momentos… Na história de vidas negras, os aprendizados intergeracionais são fundamentais para assegurar a continuidade e a sobrevivência da nossa cultura e identidade.
O filme explora a interseção entre memórias pessoais e históricas, especialmente através de Felismina, que, com o adoecimento, revive traumas antigos, como a perda de Maria José, levada sem o consentimento da mãe. Janaína, ao investigar o passado da avó, descobre segredos dolorosos que conectam essas memórias ao impacto histórico da escravidão no Rio Grande do Norte. A pergunta “cadê Maria José?” permanece sem resposta. Em sua investigação, Janaína encontra fotos antigas e, ao conversar com a sua mãe, descobre o segredo que Felismina carregou por décadas.
A frase “sabia que um dia ela iria voltar”, sugere que a esperança nunca abandonou Felismina. O encontro com a ancestralidade é representado em uma cena de renascimento, onde todas as mulheres vestem roupas brancas, e que remete a rituais de iniciação e nascimento, simbolizando um ciclo de renovação e esperança. O filme oferece uma reflexão profunda sobre o cuidado e a continuidade das histórias e tradições através das gerações.
“Felis” é um curta-metragem que explora de maneira sensível e poderosa o entrelaçamento das experiências pessoais com a memória coletiva e histórica. A obra destaca a importância do cuidado e da ancestralidade, proporcionando uma visão íntima da experiência negra e feminina.
Texto produzido como produto final da oficina de crítica cinematográfica ministrada por Cecília Barroso durante a programação da 3ª Macambira - Mostra de Cinema de Mulheridades e Dissidentes de Gênero. Autoria de Amanda Raquel e Revisão Rosy Nascimento.
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