Camila Cordeiro Ribeiro, BA, 9min
“Jussara” é um curta de animação que, em 9 minutos, apresenta a rotina da protagonista, marcada pela troca de histórias, através da contação e da escuta. Com traços delicados, o filme utiliza tons de azul, que frequentemente aparecem nas roupas e objetos da protagonista, assim como nas paredes de sua casa. As cores terrosas, marrons e verdes das plantas e árvores reforçam a sensação de uma pequena comunidade. Jussara é uma figura popular na vila, e as visitas frequentes em busca de suas histórias evidenciam a importância desse tema em sua vida, simbolizado pelo imenso livro que forma o teto de sua casa e pelas pilhas de livros que preenchem os cômodos.
Em muitas visitas, crianças, jovens e pessoas mais velhas vão até a casa de Jussara para se deleitar com suas histórias, algo raro nos dias de hoje, onde a escuta atenta aos mais velhos é menos comum. Elas a buscam e a ouvem, valorizando não apenas suas narrativas, mas também os conhecimentos que Jussara compartilha sobre os encantos e a importância das plantas. Esse olhar destaca a tradição que valoriza a oralidade das pessoas “mais velhas” como meio de transmitir conhecimentos às gerações mais novas. Utilizo a denominação “mais velha” por tê-la aprendido em espaços de ativismo negro, onde é empregada para preservar a identidade cultural e refletir estima e respeito pelo acúmulo de sabedoria. Assim, busco valorizar e desconstruir estereótipos sobre a velhice, desafiando a visão comum de que as pessoas idosas são menos funcionais, um preconceito ainda presente em muitos espaços.
Não sei se a fala e a escuta de Jussara podem ser definidas como um trabalho, uma missão, um dom ou uma dedicação, mas, certamente, são essenciais. No entanto, essa constante disponibilidade pode se tornar exaustiva. Até que ponto ser indispensável pode nos
consumir? Quantas vezes as mulheres priorizam os outros antes de si mesmas? Essa reflexão surgiu quando, em determinado momento do filme, os livros que antes estavam espalhados pela casa de Jussara começaram a se acumular em pilhas, ocupando cada vez mais espaço e parte significativa de sua vida. Em seus sonhos, os livros chegavam a cobrir toda a sala, simbolizando não apenas a carga de responsabilidades, mas também o peso das expectativas que recaem sobre ela. Quando as histórias passam a preencher toda a sua vida, talvez seja o momento de deixá-las ir, libertá-las, para se preencher de si mesma.
As mais velhas são bibliotecas vivas. Em anos de trabalho com mulheres mais velhas, muitas me disseram que suas vidas dariam livros, mas, segundo elas, ninguém nunca parou para ouvi-las. Por isso, a surpresa ao encontrarem ouvidos curiosos e dispostos a conhecer suas histórias. Jussara é a própria encarnação dessa história viva, carregando o conhecimento de toda uma comunidade, que felizmente valoriza isso.
Nesse momento de sua vida, Jussara se redescobre, mostrando que a transformação pode ocorrer em qualquer fase. Ao levar uma pilha de livros ao telhado, ela entrega ao universo as histórias de muitos da comunidade, permitindo que elas se espalhem pelos céus e sejam consumidas por outras mentes curiosas. É, então, chegado o momento de focar em sua própria narrativa.
A delicadeza de Jussara permeia toda a animação, refletida nas imagens, sons, cores e nos ouvidos atentos dos personagens. Para quem assiste, o filme destaca a importância de reconhecer que sempre é tempo de reconstruções, mudanças de caminho e redescobertas. Não quero soar como um clichê motivacional, mas acredito que, em certas situações da vida, a virada de chave acontece quando nos enxergamos como protagonistas de nossas próprias histórias. E isso, especialmente para mulheres negras mais velhas, possui uma beleza e uma potência singulares.
Texto produzido como produto final da oficina de crítica cinematográfica ministrada por Cecília Barroso durante a programação da 3ª Macambira - Mostra de Cinema de Mulheridades e Dissidentes de Gênero. Autoria de Amanda Raquel e Revisão Rosy Nascimento.
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